A
decadência ocidental e suas implicações políticas e intelectuais
Por
José
Alexandre Altahyde Hage (*)
Saber se o Ocidente, Europa e Estados Unidos estaria mesmo em
declínio cultural, político e econômico é tarefa que não se consegue obter em
poucas linhas. O intuito da reflexão é somente contribuir com o debate que
ainda permanece, sobretudo em virtude da guerra entre Rússia e Ucrânia, bem
como do assédio da China sobre Taiwan nas últimas semanas. As potências
ocidentais teriam ainda vigor para fazer valer seus princípios que as
expressavam, mesmo estando em lugares distantes, da mesma forma que fora a partir
da Segunda Guerra Mundial? Entre 1918 e 1924 o estudioso alemão Oswald Spengler
publicou livro com provocante nome. A obra A Decadência do Ocidente,
(dois volumes) a fazer jus ao título, procura profetizar o fim do mundo
ocidental, a começar pela Europa, como centro dinamizador (e hegemônico) da
política mundial. Livro de leitura árdua, pois versa sobre arquitetura,
política, artes em geral etc., sugere que o declínio do Oeste se daria por algo
paradoxal: o excesso de conforto material que resultaria do progresso econômico
e tecnológico.
Em outras palavras, o mundo ocidental
perderia vigor, à primeira vista, pela facilidade de sobrevivência para a(o)
cidadã(o) média(o). O(a) homem/mulher em sociedade não mais precisaria sair a
campo para enfrentar feras ou intempéries para obter boas quantidades na
produção agrícola e na pecuária. O progresso técnico, acelerado na Era
Contemporânea, deu à sociedade humana um rol de avanços que só cresceu no
século XX, sobretudo após a Segunda Guerra mundial.
Avanços na medicina, a começar com
vacinas contra doenças que eram mortais há algumas décadas, na agricultura, por
meio da revolução verde que deu produtividade a áreas de pouco interesse, caso
do cerrado brasileiro, e demais progressos, que permitiram bem-estar social,
são marcantes na cronologia socioeconômica da Europa Ocidental, dos Estados
Unidos e observáveis em partes “ocidentalizadas” da Ásia do Leste, como Coreia
do Sul, Cingapura e Japão.
É fato que a distribuição desses prêmios
não se tornou universal, como esperado. Muitas áreas do Hemisfério Sul, África
e América Latina não foram contempladas. Isso contraria a premissa de que o
mundo vive em uma dinâmica única, na qual todos os países teriam as mesmas
vantagens e dificuldades no campo da economia e da tecnologia. Ainda que possa
ser controverso, pode-se encontrar partes da Índia e África, por exemplo, que
dependem da queima de madeira ou de estercos para obter calor, ao passo que a
Europa Ocidental milita para substituir a energia nuclear para dar espaço
ao green power, combustíveis renováveis. Isso sem mencionar o
uso da internet por banda larga, cujo uso continua desigual no Globo.
Assim, podemos observar que o outono ocidental não ocorreria por falta de bens
materiais e de progresso técnico, mas sim por algo não mensurável de modo
instantâneo: espiritualidade e valores morais que seriam desdobramento da
tradição e cultura populares. A civilização do Ocidente perderia vigor por
excesso de conforto em detrimento da firmeza espiritual que, inicialmente,
seria preenchida pelo Cristianismo, católico ou protestante.
A ideia de que a sociedade humana se desenvolve, e se firma, em face das
dificuldades da natureza, por exemplo, já era conhecida no século XIX.
Pioneiros(as) do pensamento geográfico apontavam o papel que invernos rigorosos
e meios inóspitos desempenhavam na inteligência do homem/mulher, que teria que
se reinventar para sobressair ao meio ambiente.
O que Spengler fez foi reforçar, com mais afinco, algo que parece não se
esgotar no momento, ao menos no debate. E a guerra entre Rússia e Ucrânia
inaugura novo capítulo sobre o assunto, visto que ela entra no mérito para
identificar até que ponto Estados Unidos, Grã-Bretanha ou Alemanha se
empenhariam para defender a Europa Oriental contra o expansionismo russo. Se a
Ucrânia alberga democracia e alguns princípios tão caros ao Ocidente, por que,
então, ela praticamente ficou ao relento, apesar do poder de tais países na
Otan?
Dentro dessa leitura, se os(as)
europeus(eias) se acostumaram, no atacado, à sociedade do conforto, logo, não
se empenhariam em defender seus valores tradicionais, bem como a herança do
Catolicismo. No lugar do Estado nacional, daria-se lugar à relativização da
soberania e ao processo de criação do federalismo continental, com a máxima de
que atribuir poder a Bruxelas, sede da União Europeia, seria maximizar efeitos
benéficos da democracia. Uma democracia multinacional, que não fosse ligada a
tradições sociopolíticas regionais, ganharia imagem de ser instituto mais que
moderno nas relações políticas.
Por outra via, alguns autores(as)
sublinham a situação atual, considerada crise, dentro das próprias
universidades e locais de formação intelectual. Sem ter relação direta com o
livro de Spengler, no trabalho intitulado A Rebelião das Elites e a
Traição da Democracia, Christopher Lasch opina que são
justamente as famosas instituições educacionais estadunidenses, no primeiro
plano, as promotoras de manifestações que desacreditam a cultura ocidental, os
cânones do teatro, da literatura e até das ciências mais “neutras” ou que não
se dão ao gosto de serem ideologizadas, como física, medicina ou matemática.
A ciência e cultura ocidentais seriam também construídas, por séculos, a
partir de escombros da colonização sobre grande parte do antigo Terceiro-Mundo,
cuja capacidade científica fora relegada de propósito ou ignorada por falta de
conhecimento dos(as) colonizadores(as). Por isso, estudantes e professores(as)
de Harvard, Stanford e outras universidades de prestígio se
empenhariam para fazer justiça social e trazer a público aquilo que não tivera
oportunidade de ocorrer: o reconhecimento cultural e científico dos(as)
excluídos(as) do mundo. Por conseguinte, o pavor que boa parte da clientela
universitária teria de não acatar tais reparos históricos o levaria à apatia ou
a corroborar esse conserto sem muita vontade.
Isso significa dizer que a cultura e
tradições não seriam mais representadas pela maioria da população (o zé
povinho, como se costuma falar no Brasil). Mas com poucos canais de voz, para
amparar seu desejo e valor; o papel do povo ficaria em segundo plano. A elite
intelectual, que ocuparia setores mais bem posicionados, universidades
prestigiosas, artes em geral e imprensa, imprimiria o que se entende por
democracia e cultura. O problema é que a consonância entre elite e povo já não
mais existiria, ou aquela elite não mais representaria os reais anseios
populares, atuando somente em endogenia intelectual.
É claro que o declínio político,
econômico e cultural de uma potência, ou de uma região (União Europeia) tem de
ser tratado de modo relativo. Os Estados Unidos não deixarão de imprimir
influência e poder nos próximos trinta anos. A elevação estratégica da China,
bem como de sua economia, não criará problemas prementes nos interesses
estadunidenses da noite para o dia. O mais crível é o surgimento de um
condomínio, no qual Washington teria destaque junto a outras potências que
ascenderão e procurarão espraiar suas influências regionalmente, ao menos. É o
que se espera de Índia, Rússia, um pouco mais da China e talvez do Brasil.
Em outro aspecto, se os Estados Unidos
descem relativamente na escala do poder mundial, embora conserve muito de seus
avanços tecnológicos, o mesmo não se pode dizer da União Europeia. O Velho
Continente, para manter a paz em seu espaço, entrou em um circuito de autofagia
cultural e política, cujo resultado pode ser sua descaracterização como centro
aglutinador de cultura e civilização. Embora possa ser apressado dizer, a
Europa pode ter a imagem de um grande navio que tem medo de navegar pelo mundo,
justamente para não passar a imagem de que sua grandeza seja arrogância.
Caso se possa procurar motivo que tenha impulsionado esse fenômeno europeu, ele
pode ser encontrado na premissa de que gerações que nasceram nas décadas 1960 e
1970 já teriam sido formadas sob a égide do bem-estar, do pacifismo, da
superação do nacional, do petróleo, do apego ao conforto econômico e, em última
instância, às posturas mais modernas, como defesa de direitos humanos, do ambientalismo,
do multiculturalismo etc.. Portanto, o pessoal que nascera naquelas décadas não
gostaria de pôr tudo a perder por causa de políticas de poder, ainda que suas
conquistas estivessem em risco.
O ponto curioso disso tudo é que o ocaso do Ocidente, se dermos razão a seus
profetas, não ocorre por falta de empenho econômico ou tecnológico, nem por
ausência de políticas de bem-estar para substancial parte de sua população. O
aspecto crítico reside em sua falta de vontade. Poderíamos dizer na falta de
“vontade nacional” que dia a dia míngua em nome de um projeto supostamente
democrático, virtuoso e equânime, mas que tem demonstrado mais desprezo pela
visão doméstica dos países membros de que apego a um futuro melhor.
Não podemos frisar que a decadência
ocidental seja, obrigatoriamente, positiva, embora seja vislumbrada como meio
de abrir espaço para países de menor poder relativo. Parte considerável de
nosso estilo de vida, democracia parlamentar, liberdade de opinião, liberdade
de organização etc., resulta daquilo que chamamos liberalismo, ao menos um tipo
dele, uma vez que por liberalismo se pode compreender visões variadas e até
divergentes. Há inclusive determinados grupos acadêmicos que preferem usar o
termo neoliberalismo para designar o desgaste pelo qual o mundo
ocidental vem passando desde os anos 1980.
Contudo, emergem algumas questões: não
será justamente esse tipo de organização sociopolítica e cultural que tem dado
tiro no próprio pé no passado recente? Não tem sido o grosso da inteligência
ocidental o primeiro grupo a desprezar, quando não combater, valores e condutas
que se julgavam ser patrimônio ocidental, que moldara a grandeza de Estados
Unidos e Europa Ocidental? Será que Índia e China passarão pelo mesmo processo
de excessiva autocrítica, quase autofágica, que também as levaria para a
decadência pelo fato desses países abrirem mão de seus modos de vida para
adotar os ocidentais?
A Ucrânia passou por mudança drástica de
poder, em 2014, para adotar valores ocidentais, incentivada pela União
Europeia, porque se imaginava como membro da família do Oeste. Em parte, Kiev
acreditava que seria socorrida pela Otan, já que se tornara espiritualmente
ocidental. De modo análogo, podemos dizer isso de Taiwan. Certa ocidentalização
daquela ilha, de início no aspecto militar, começou levando em conta que os
Estados Unidos os ajudaria, caso Pequim demonstrasse agressividade. Todo o
leste asiático foi politicamente moldado, a partir da Guerra Fria, pensando que
os Estados Unidos os socorreria se houvesse ataque da União Soviética, no
passado, e da China na atualidade.
E se nem a União Europeia, pela Otan,
nem os Estados Unidos correrem para ajudar seus parceiros, que foram objetos de
promessa, contra assédio e agressão dos mais fortes? Mesmo que seja
contraproducente, não foi a nota de proteção que ajudou a dar imagem positiva
ao Ocidente, como garantidor da ordem internacional e da proteção aos mais
fracos? Nesse processo, o que deverá pensar a Ucrânia, Taiwan, por exemplo,
nesse andar das coisas? São questões que, para nós, devem concorrer para a
ampliação do bom debate.
(*) José Alexandre Altahyde Hage é
professor do Departamento de Relações Internacionais da Escola Paulista de
Política, Economia e Negócios (Eppen) da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp)-Campus Osasco.
Ilustração: Getty Images.