Consignado dos servidores: redução ou endividamento?
A
advocacia em benefício de servidores públicos muitas vezes nos coloca frente a
circunstâncias paradoxais. A mais recente delas diz respeito à alteração da Lei
14.509, de dezembro de 2022, que foi editada ainda no governo Bolsonaro e que
trouxe a previsão de aumento da margem consignável para 45% da remuneração dos
servidores públicos em atividade ou aposentados.
A
margem consignável é o montante que os servidores públicos poderão comprometer
de sua remuneração para a tomada de empréstimos junto aos bancos e instituições
financeiras. Ou seja, a referida lei permitiu que quase metade da remuneração
possa vir a ser objeto de garantia para a obtenção de empréstimos, com desconto
mensal da dívida em folha.
Necessário
refletir que esse tipo de circunstância evidencia um problema muitas vezes
oculto: o superendividamento dos servidores públicos brasileiros.
A
possibilidade de os servidores poderem comprometer grande parte de sua
remuneração ou aposentadoria pelos empréstimos da margem consignável pode gerar
a falsa sensação de maior composição orçamentária dessas famílias, que
disporiam de um crédito garantido na praça. Porém, tal artimanha foi utilizada
para não se promover a negociação de reposições inflacionárias e o reajuste das
remunerações dos servidores, congeladas até o último reajuste aplicado pelo
Governo Lula.
Mas
há uma peculiaridade importante da Lei 14.509/2022: dos 45% de margem
consignável, o Governo Bolsonaro previu que 5% fossem designados exclusivamente
para amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito ou para a
utilização com a finalidade de saque por meio de cartão de crédito. Ou seja, o
servidor poderia utilizar 5% de sua margem consignável para quitar dívidas de
cartão de crédito ou para sacar valores das operadoras de cartão.
A
despeito da lei falar sobre essa modalidade de maneira mais lacônica, a
utilização da margem de 5% para crédito ou saque não seria fomentada, a priori,
para uso em cartões de crédito convencionais, que possuem taxas de juros
altíssimas, de até 800% ao ano, tanto para inadimplemento quanto para saque. A
ideia foi no sentido de criar a modalidade de cartão de crédito consignado, que
contaria com benefício de isenção de anuidade e taxa de juros de cerca de 20%
ao ano.
Para
além do cartão de crédito consignado, a lei encaminhada pelo Congresso ao
ex-presidente Bolsonaro previa também a figura do cartão de benefício
consignado. Porém, ao analisar a lei, o governo Bolsonaro vetou o inciso que
previa a destinação de outros 5% da margem consignável para a amortização de
despesas contraídas por meio de cartão consignado de benefício ou para a
utilização com a finalidade de saque por meio de cartão consignado de
benefício.
Segundo
informações do próprio Governo Federal, “O cartão de ‘crédito consignado de benefício’
é uma modalidade de cartão de crédito com desconto em contracheque e benefícios
vinculados obrigatoriamente, como descontos em estabelecimentos específicos,
seguros, etc.”. Ou seja, trata-se de uma facilidade, de um cartão de benefício
destinado para a compra ou saque dentro da margem consignável. Os juros desse
tipo de cartão são limitados pelo governo e se diferenciam bastante dos juros
praticados pelo mercado financeiro.
Quando
há o veto presidencial a um trecho de lei, como foi feito pelo Governo
Bolsonaro com relação ao cartão de benefício consignado, necessário que o
Congresso Nacional reaprecie a matéria.
Na
análise parlamentar, o veto presidencial foi derrubado e, com isso, a
legislação reincorporou a previsão do cartão de benefício consignado. Ou seja,
além do cartão de crédito consignado com margem de 5%, passou a existir também
o cartão de benefício consignado, com margem de 5%.
Em
virtude dessa circunstância, a seguinte realidade se apresentou: no governo
Bolsonaro, a margem consignável dos servidores públicos era de 45%,
destinando-se 5% para a amortização de despesas contraídas por meio de cartão
de crédito ou para finalidade de saque por cartão de crédito (cartão de crédito
consignado). Na prática, os servidores poderiam garantir 40% de suas
remunerações com empréstimos.
Já
em 2023, o Congresso Nacional analisou o veto do ex-presidente Bolsonaro e o
derrubou, fazendo com que 5% da margem consignável fosse destinada ao cartão de
benefício consignável. Assim, a margem consignável passou a ser de 35%,
destinando-se 5% para o cartão de crédito consignado e outros 5% para o cartão
de benefício consignado.
Por
óbvio, após a apreciação do veto, o governo Lula não poderia deixar de
promulgar a reinclusão do inciso na lei, que tratou do cartão de benefício
consignado. Mas aqui surgiu um potencial problema: aqueles servidores que se
utilizaram da margem consignável de 40% para empréstimos ainda no governo
anterior deveriam realizar a renegociação da margem consignável para os atuais
35%? Não. O governo do Presidente Lula garantiu que os empréstimos já
realizados se utilizando dos 100% dos antigos 40% da margem consignável serão
mantidos até o final do pagamento, enquanto os novos empréstimos deverão
obedecer a lei, limitando-se a 35% da remuneração.
De
todo, o que é preciso refletir é se a defesa de uma maior margem consignável
para empréstimos dos servidores seria a defesa de um direito dos servidores
públicos. As financeiras de empréstimo consignado são grandes propulsoras de
uma alta incidência de juros no mercado brasileiro, funcionam como verdadeiras
captadoras de empréstimos, além de se utilizarem muitas vezes de uma atuação
incisiva e predadora para vender seus produtos de empréstimo ou vender os
próprios dados dos servidores.
Até
que ponto a busca pela justiça social seria alcançada pela defesa dos
interesses do mercado em desfavor da preocupação com o superendividamento dos
servidores? O paradoxo que em tese se apresenta é desmistificado pela
compreensão de que o principal objetivo deva ser sempre a busca por salários
mais dignos, que reflitam as perdas inflacionárias acumuladas ao longo dos
anos, além da garantia de melhores condições de trabalho e de aposentadoria.
(*)
é advogado especialista em servidores
públicos e Direito Previdenciário e sócio do escritório Mauro Menezes &
Advogados.