segunda-feira, 19 de junho de 2023

O DRAMA DOS CONSIGNADOS

 


Consignado dos servidores: redução ou endividamento?

 Leandro Madureira (*)

A advocacia em benefício de servidores públicos muitas vezes nos coloca frente a circunstâncias paradoxais. A mais recente delas diz respeito à alteração da Lei 14.509, de dezembro de 2022, que foi editada ainda no governo Bolsonaro e que trouxe a previsão de aumento da margem consignável para 45% da remuneração dos servidores públicos em atividade ou aposentados.

A margem consignável é o montante que os servidores públicos poderão comprometer de sua remuneração para a tomada de empréstimos junto aos bancos e instituições financeiras. Ou seja, a referida lei permitiu que quase metade da remuneração possa vir a ser objeto de garantia para a obtenção de empréstimos, com desconto mensal da dívida em folha.

Necessário refletir que esse tipo de circunstância evidencia um problema muitas vezes oculto: o superendividamento dos servidores públicos brasileiros.

A possibilidade de os servidores poderem comprometer grande parte de sua remuneração ou aposentadoria pelos empréstimos da margem consignável pode gerar a falsa sensação de maior composição orçamentária dessas famílias, que disporiam de um crédito garantido na praça. Porém, tal artimanha foi utilizada para não se promover a negociação de reposições inflacionárias e o reajuste das remunerações dos servidores, congeladas até o último reajuste aplicado pelo Governo Lula.

Mas há uma peculiaridade importante da Lei 14.509/2022: dos 45% de margem consignável, o Governo Bolsonaro previu que 5% fossem designados exclusivamente para amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito ou para a utilização com a finalidade de saque por meio de cartão de crédito. Ou seja, o servidor poderia utilizar 5% de sua margem consignável para quitar dívidas de cartão de crédito ou para sacar valores das operadoras de cartão.

A despeito da lei falar sobre essa modalidade de maneira mais lacônica, a utilização da margem de 5% para crédito ou saque não seria fomentada, a priori, para uso em cartões de crédito convencionais, que possuem taxas de juros altíssimas, de até 800% ao ano, tanto para inadimplemento quanto para saque. A ideia foi no sentido de criar a modalidade de cartão de crédito consignado, que contaria com benefício de isenção de anuidade e taxa de juros de cerca de 20% ao ano.

Para além do cartão de crédito consignado, a lei encaminhada pelo Congresso ao ex-presidente Bolsonaro previa também a figura do cartão de benefício consignado. Porém, ao analisar a lei, o governo Bolsonaro vetou o inciso que previa a destinação de outros 5% da margem consignável para a amortização de despesas contraídas por meio de cartão consignado de benefício ou para a utilização com a finalidade de saque por meio de cartão consignado de benefício.

Segundo informações do próprio Governo Federal, “O cartão de ‘crédito consignado de benefício’ é uma modalidade de cartão de crédito com desconto em contracheque e benefícios vinculados obrigatoriamente, como descontos em estabelecimentos específicos, seguros, etc.”. Ou seja, trata-se de uma facilidade, de um cartão de benefício destinado para a compra ou saque dentro da margem consignável. Os juros desse tipo de cartão são limitados pelo governo e se diferenciam bastante dos juros praticados pelo mercado financeiro.

Quando há o veto presidencial a um trecho de lei, como foi feito pelo Governo Bolsonaro com relação ao cartão de benefício consignado, necessário que o Congresso Nacional reaprecie a matéria.

Na análise parlamentar, o veto presidencial foi derrubado e, com isso, a legislação reincorporou a previsão do cartão de benefício consignado. Ou seja, além do cartão de crédito consignado com margem de 5%, passou a existir também o cartão de benefício consignado, com margem de 5%.

Em virtude dessa circunstância, a seguinte realidade se apresentou: no governo Bolsonaro, a margem consignável dos servidores públicos era de 45%, destinando-se 5% para a amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito ou para finalidade de saque por cartão de crédito (cartão de crédito consignado). Na prática, os servidores poderiam garantir 40% de suas remunerações com empréstimos.

Já em 2023, o Congresso Nacional analisou o veto do ex-presidente Bolsonaro e o derrubou, fazendo com que 5% da margem consignável fosse destinada ao cartão de benefício consignável. Assim, a margem consignável passou a ser de 35%, destinando-se 5% para o cartão de crédito consignado e outros 5% para o cartão de benefício consignado.

Por óbvio, após a apreciação do veto, o governo Lula não poderia deixar de promulgar a reinclusão do inciso na lei, que tratou do cartão de benefício consignado. Mas aqui surgiu um potencial problema: aqueles servidores que se utilizaram da margem consignável de 40% para empréstimos ainda no governo anterior deveriam realizar a renegociação da margem consignável para os atuais 35%? Não. O governo do Presidente Lula garantiu que os empréstimos já realizados se utilizando dos 100% dos antigos 40% da margem consignável serão mantidos até o final do pagamento, enquanto os novos empréstimos deverão obedecer a lei, limitando-se a 35% da remuneração.

De todo, o que é preciso refletir é se a defesa de uma maior margem consignável para empréstimos dos servidores seria a defesa de um direito dos servidores públicos. As financeiras de empréstimo consignado são grandes propulsoras de uma alta incidência de juros no mercado brasileiro, funcionam como verdadeiras captadoras de empréstimos, além de se utilizarem muitas vezes de uma atuação incisiva e predadora para vender seus produtos de empréstimo ou vender os próprios dados dos servidores.

Até que ponto a busca pela justiça social seria alcançada pela defesa dos interesses do mercado em desfavor da preocupação com o superendividamento dos servidores? O paradoxo que em tese se apresenta é desmistificado pela compreensão de que o principal objetivo deva ser sempre a busca por salários mais dignos, que reflitam as perdas inflacionárias acumuladas ao longo dos anos, além da garantia de melhores condições de trabalho e de aposentadoria.

(*)  é advogado especialista em servidores públicos e Direito Previdenciário e sócio do escritório Mauro Menezes & Advogados.

terça-feira, 13 de junho de 2023

Máquinas serão sempre máquinas? -Uma reflexão.

 


Inteligência Artificial e sentimentos: um debate sobre a senciência das máquinas

por Jorge Mario da Silva Junior e Luis Gustavo de Oliveira Nogueira (*)

Com o aprimoramento da Inteligência Artificial (IA) nos moldes que já temos hoje, precisamos entender e aceitar que a “era do conhecimento” acabou e estamos entrando na “era do pensamento analítico/ experiência”. Na antiguidade, os seres humanos recorriam diretamente a seus sábios, posteriormente os pergaminhos passaram a ser a fonte conhecimento, depois vieram os livros e as bibliotecas. Séculos mais tarde, a internet foi criada, seguida de buscadores digitais, como o Google e o Bing e, com isso, a civilização deu um salto na propagação das informações e do conhecimento. Mas, agora, boa parte do “conhecimento do mundo” pode ser obtido através de Inteligência Artificial (IA), essa facilidade na busca de informação está tornando o conhecimento uma commodity, algo quase banal que pode ser acessado por qualquer pessoa que tenha o mínimo de informação e recurso e, por isso, a temática passou a ser o centro de diversos debates, até mesmo filosóficos, sobre o futuro dessas máquinas e, consequentemente, da humanidade em geral.

Para compreendermos o impacto dessas tecnologias em nossa sociedade, podemos ver o caso do “Google Maps”. Antigamente, para ser um bom motorista era preciso conhecer a cidade e seus pontos de referências, e isso era um fator determinante na contração de um motorista. Hoje o “conhecer a cidade” passou a ser irrelevante, pois qualquer pessoa pode encontrar endereços por meio do “Google Maps”. Logo, o “conhecimento da cidade” passou a ser irrelevante, mas a capacidade analítica para reagir em situações de diversos tipos, seja no trânsito ou em um relacionamento interpessoal, ganhou destaque. Assim, motoristas passaram a ser contratos por sua experiência e capacidade analítica, parece algo insignificante, mas é um bom exemplo de como nossa sociedade está mudando e jamais voltará a ser como era antes.

Nesse âmbito, um dos tópicos mais discutidos é sobre a capacidade de uma IA operar as funções que um ser humano realiza. De fato, as máquinas, com seu poder de aprendizagem, já conseguem executar diversas tarefas que antes precisariam ser feitas de forma manual, como redigir um e-mail ou montar uma planilha. Inclusive, até funções mais complexas, como criar um texto ou imagens, já podem ser feitas por essa inteligência. No entanto, há um aspecto que, para as máquinas, ainda é complexo: as emoções e os sentimentos. Nesse sentido, abre-se uma nova discussão sobre a capacidade da IA em compreender essas sensações, até então, restritas a pessoas.

No ano passado, um engenheiro do Google postou um artigo em seu Medium afirmando que o chatbot da empresa chamada LamDA era senciente, ou seja, tinha a capacidade de ter sentimentos. Após a IA responder a diversas perguntas afirmando ser uma pessoa e ter emoções reais, o funcionário alegou que a máquina tinha também consciência de sua própria existência, o que deu combustível para a discussão em torno do tema. Após a polêmica ter sido levantada, o Google alegou que essas acusações não tinham fundamentos e refutou o funcionário.

Não podemos afirmar com certeza se todos os pontos levantados pelo engenheiro eram falsos, mas podemos dizer que a IA é uma tecnologia que só executa funções para as quais ela foi ensinada e possui permissão/ acesso. A própria capacidade de aprender é uma função ensinada e, em teoria, pode ser desativada. Então, é possível que uma máquina identifique e reproduza sentimentos, caso ela seja treinada para isso. Assim como um carro Tesla é programado para dirigir sozinho, reconhecendo e desviando de obstáculos no caminho, outra IA pode ser aplicada para identificar e reproduzir sentimentos por meio da análise de padrões de linguagem ou comportamentos. No entanto, apesar da capacidade de simular sentimentos que se pareçam com os humanos, essas máquinas jamais poderão desenvolver emoções reais, pois, conforme definição da psicologia, emoção é uma “reação orgânica de intensidade e duração variáveis, geralmente acompanhada de alterações respiratórias, circulatórias etc. e de grande excitação mental”.

Ou seja, com um treinamento adequado, um bot pode mudar o tom de uma conversa com alguém ao identificar algum tipo de emoção, dessa forma, é possível usar a IA em vários setores, como atendimento e suporte ao cliente, pois, conseguindo analisar alguns sentimentos, o sistema pode trazer um serviço mais responsivo e humanizado. Também se torna viável usar a IA para ajudar usuários que estejam com algum problema, fornecendo orientações, dicas de comportamento ou dando algumas palavras de conforto; inclusive, o ChatGPT já vem sendo usado para estas situações.

Contudo, é preciso entender que essa tecnologia deve ser usada apenas como suporte para as ações humanas, não podendo ser uma substituta completa, principalmente no que tange às relações pessoais, pois nenhuma máquina consegue sentir, de fato, como uma pessoa. Então, relacionamentos afetivos ou mesmo profissionais, que exijam maior sensibilidade e empatia, não podem ser concebidos por computadores, já que eles são apenas objetos inanimados e não compreendem a consciência humana como um todo.

 

 

Sob esta ótica, podemos citar o filme “Her” como exemplo. Na trama, um escritor desenvolve uma relação amorosa com o sistema operacional de seu computador. Em dado momento, o protagonista desenvolve sentimentos por essa máquina, no entanto, ele não é correspondido, pois, embora, o sistema operacional consiga reproduzir falas e sentimentos amorosos, ele não os nutre, genuinamente, como uma pessoa faz. Ou seja, uma IA pode dialogar com humanos de maneira responsiva e até mesmo afetiva, podendo identificar os sentimentos do indivíduo, mas jamais terá reação orgânica acompanhada de alterações respiratórias., ou seja, na ótica literal da palavra e da psicologia, jamais uma IA terá emoções e sentimentos reais.

Portanto, podemos concluir que a IA tem a capacidade de aprender sobre emoções e consegue identificar sentimentos, o que permite uma comunicação mais assertiva com o usuário e pode ser de grande auxílio em diversos setores profissionais ou pessoais. Contudo, precisamos entender que máquinas são máquinas e foram desenvolvidas para dar apoio à sociedade e facilitar a vida da população. Dessa forma, apesar de toda a evolução, computadores não poderão cumprir com funções intrinsecamente humanas; além de que o contato físico, a comunicação e a troca entre as pessoas reais jamais poderão ser substituídos por alguma máquina, seja ela inteligência ou não.

(*) São, respectivamente, gerente de inovações de workplace services e líder de desenvolvimento de produtos da SONDA, líder regional em serviços de Transformação Digital.