
A liberdade de expressão, pilar das democracias, enfrenta novos e complexos
desafios na era digital. No Brasil, decisões recentes do Supremo Tribunal
Federal (STF) sobre a responsabilidade de plataformas digitais reacenderam um
debate fundamental: onde termina a liberdade e começa o risco da censura? Para
compreender essa tensão, é essencial revisitar as raízes históricas desse
direito, especialmente o pensamento seminal de John Milton (1608-1674).
Milton, em sua magistral "Areopagítica" (1644), ergueu uma das mais
veementes defesas da liberdade de expressão e de imprensa. O título de sua
obra, remete ao Areópago ateniense — antigo conselho de debate e julgamento
onde o apóstolo São Paulo discursou (Atos 17) —, que simboliza um fórum de
sabedoria e debate racional. Confrontando a censura prévia, Milton argumentava
que uma obra deve ser "examinada, refutada e reprovada", e não
proibida.
Para
Milton, a leitura, mesmo de "livros maus" ou heréticos, era
essencial. Ele citava figuras como Moisés, Davi e Paulo como eruditos que liam
"livros de todos os tipos", sustentando que o confronto com o erro
nos permite aprender e discernir a verdade. A essência de seu pensamento
residia na crença de que Deus dotou cada pessoa com razão e livre arbítrio para
julgar ideias por si mesmas. A visão de Milton, de que a verdade prevalece no
livre confronto de ideias, influenciou diretamente a Primeira Emenda da
Constituição dos EUA e foi citada pela Suprema Corte americana em casos que
defendem uma ampla proteção da liberdade de expressão.
O Tribunal citou nominalmente Milton em casos históricos, como New York Times
Co. v. Sullivan, para explicar o valor inerente inclusive de declarações
inicialmente tidas como falsas, e em Times Film Corporation v. Cidade de
Chicago, para elucidar os perigos da censura prévia. O juiz William O. Douglas,
em Eisenstadt v. Baird, e o juiz Hugo L. Black, em sua discordância no caso
Partido Comunista dos Estados Unidos v. Subversive Activities Control Board,
também invocaram Milton para defender uma proteção ampla e abrangente da
liberdade de expressão e associação.
No Brasil, a chegada da internet e das redes sociais impôs um novo cenário. O
Artigo 19 do Marco Civil da Internet (2014) visava proteger a liberdade de
expressão, responsabilizando plataformas por conteúdo de terceiros apenas após
ordem judicial e seu descumprimento. Contudo, o Supremo Tribunal Federal tem
revisitado essa interpretação. Decisões recentes da Corte impuseram
responsabilização direta às plataformas para certas categorias de conteúdos
considerados ilícitos pelo STF. Para outros crimes, como os contra a honra, a
ordem judicial prévia ainda é necessária, mas a reiteração de conteúdo já
julgado ilegal pode gerar responsabilidade com notificação extrajudicial. Essa
nova abordagem do Supremo, suscita preocupações legítimas sobre a emergência de
censura. Ao exigir que empresas privadas façam um "juízo prévio"
sobre a legalidade de um conteúdo, o STF as coloca em uma posição de
"polícia da internet". Há o risco evidente de que, para evitar
penalidades, as plataformas optem pela remoção excessiva de conteúdos, mesmo
aqueles que não são claramente ilícitos, suprimindo o debate e a diversidade de
opiniões. Esse cenário também levanta a questão da imparcialidade e da capacidade
técnica das empresas para tal tarefa.
A
gravidade desse risco é amplificada pelo contexto político brasileiro, com um
governo de esquerda, que se diz comunista, alinhado a regimes autoritários
conhecidos pela repressão à liberdade de expressão e de imprensa – como China,
Rússia, Irã, Venezuela, entre outros. Nesses países, a supressão de vozes
dissidentes é uma prática comum, e a liberdade de expressão é severamente
restringida em nome da "segurança nacional" ou da "ordem
social". A lição de John Milton, de que a verdade prevalece no livre
confronto de ideias e que a censura é uma ferramenta da tirania, ressoa com
urgência.
Garantir que o combate à desinformação não se transforme em uma porta para a
supressão de opiniões legítimas, mesmo as impopulares, é o grande desafio. O
equilíbrio entre coibir abusos e proteger a essência da liberdade de expressão
exige clareza legislativa, transparência nas decisões e, acima de tudo, um
compromisso inabalável com o "mercado de ideias" que Milton tão
eloquentemente defendeu.
Eduardo Berbigier é
advogado tributarista, especialista em Agronegócio, membro dos Comitês Juridico
e Tributário da Sociedade Rural Brasileira e CEO do Berbigier Sociedade de
Advogados.
Ilustração: Correio Braziliense.
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