domingo, 12 de outubro de 2025

O Desmantelamento Silencioso da Democracia


O desmantelamento silencioso da democracia

Eduardo Berbigier (*) 

As contínuas manifestações de descontentamento, vistas em frente aos quartéis em 2022 e, mais recentemente, em diversas cidades, sinalizam que uma parcela significativa da população brasileira entende profundamente os desafios políticos do país. Longe de serem meros atos isolados de frustração, esses movimentos revelam um crescente despertar cívico e a clara percepção de que as estruturas tradicionais de poder e representação não estão mais atendendo aos anseios populares. É um clamor que indica que a sociedade não apenas reconhece a crise institucional em curso, mas também busca, de forma ainda incipiente, os meios para resistir ao que muitos consideram ser um desmantelamento gradual e silencioso da ordem democrática estabelecida.

Contudo, essa mesma população encontra-se privada dos meios de ação necessários para transformar sua indignação em força política organizada, uma carência imposta por uma elite. Faltam-lhe, por exemplo, militância e lideranças.

Em contraste, a esquerda, com mais de 150 anos de tradição mundial e presença consolidada no Brasil há mais de 50 anos, demonstra consciência exata da importância da militância e da mobilização. Recentemente, um líder esquerdista declarou: "Queremos militância nas faculdades privadas". Há muitos e muitos anos, a esquerda está presente nas faculdades públicas e privadas, pois os universitários são os futuros economistas, arquitetos, advogados, juízes e políticos – a "classe falante" – que sustentarão o movimento ideológico.
Lembrando a célebre frase "É a economia, estúpido!", cunhada por James Carville em 1992 para focar a campanha de Bill Clinton, é fundamental que a sociedade brasileira tenha consciência: É a política!

É preciso ter plena clareza de que a esquerda detém um poder de controle considerável sobre inúmeros veículos e profissionais de comunicação, universidades e seu corpo docente, a classe artística (cantores, escritores, autores de novelas) e boa parte da infraestrutura estatal.

Nesse cenário, a eleição de senadores, deputados, governadores, prefeitos e vereadores, muitas vezes, significa apenas colocá-los dentro de um esquema de poder já estabelecido e dominado.

Isso fica claro nas votações e nos acordos legislativos que, quase sempre, atendem exclusivamente aos interesses dos próprios parlamentares, em detrimento dos interesses reais do País. Regras legislativas são alteradas não para o bem público, mas para garantir a permanência no poder de forma indefinida ou para favorecer seus sucessores e apaniguados. Muitos passam a ocupar cargos no governo e são pautados pela mídia de esquerda.

Erosão democrática e cenário de coação
Como consequência, o Brasil tem testemunhado uma erosão gradual das proteções democráticas. São processos que envolvem a neutralização da oposição, a centralização do poder (que será estabelecida definitivamente com a reforma tributária), um controle ainda 'discreto' da mídia e a fragilidade institucional. Soma-se a isso um sistema de segurança pública fraco, incapaz de combater a corrupção, as inúmeras mortes e assassinatos e o comando do narcotráfico em morros, favelas e grandes extensões do território nacional, criando um solo fértil para o surgimento de movimentos paralelos e tiranos.

Vale ressaltar que a transição para o autoritarismo raramente é abrupta; é um processo lento de erosão.

O Brasil já tem sido apontado em certos contextos como um narcoestado, e não é impossível que, em setores-chave da administração, o País viva um cenário de coação semelhante àquele retratado na série colombiana “Pablo Escobar, El Patrón del Mal” (Netflix).

Em um trecho marcante (capítulo 16), Pablo Escobar notifica o Coronel Pedregal, comandante das forças policiais, com um ultimato claro: "Ou recebe 100 mil dólares mensais [...] para oferecer a proteção necessária ao Cartel de Medellín, de modo que não tenham problemas com a lei, ou eu mato o senhor, seu pai, sua mãe, seus tios, sua esposa Maria, seus filhos Santiago e Pilar e até sua avó. Se sua avó já morreu, eu a desenterro e a mato de novo". Ao ser questionado se era uma ameaça, Escobar responde que é uma "notificação oficial".

Essa ficção levanta um questionamento crítico: se a política é dominada e o Estado é fragilizado, setores da administração pública podem estar vivendo uma coação semelhante, onde a escolha não é entre o certo e o errado, mas sim entre a submissão e a destruição. A política, mais do que nunca, exige a eterna vigilância.

O declínio da República e o risco de irreversibilidade
O atual governo brasileiro, sob o pretexto de estabilidade e "pacificação", tem levado a cabo um projeto de poder que solapa as fundações da República. A insistente investida sobre o arcabouço fiscal, a manutenção de um inchaço ministerial alimentado por critérios puramente políticos em detrimento da meritocracia e a clara priorização de gastos clientelistas em detrimento do saneamento básico e da infraestrutura essencial, demonstram um alarmante descompromisso com o futuro sustentável da Nação. O preço dessa política, focada na perpetuação do status quo e no financiamento da máquina ideológica, será pago por gerações, na forma de um endividamento insustentável e da paralisia do desenvolvimento.

Ademais, a tolerância e até o incentivo a um discurso que busca reescrever a história recente do País e deslegitimar instituições que, historicamente, se opuseram ao seu projeto hegemônico, criam um ambiente de profunda incerteza jurídica e social. Ao promover uma política externa baseada em alinhamentos ideológicos arriscados, em detrimento dos interesses comerciais estratégicos do Brasil, e ao permitir que a corrupção volte a pairar sobre estatais e fundos de investimento com uma inquieta familiaridade, o governo não apenas flerta com o autoritarismo, mas pavimenta o caminho para a irreversibilidade do declínio institucional. A responsabilidade por esse silencioso desmantelamento recai sobre uma gestão que trocou a governança pela doutrina.

(*) é advogado tributarista, especialista em Agronegócio, membro dos Comitês Juridico e Tributário da Sociedade Rural Brasileira e CEO do Berbigier Sociedade de Advogados.

sábado, 11 de outubro de 2025

Inadimplência recorde expõe o fracasso do ambiente de negócios no Brasil

 

Por Lucas Mantovani (*)

A recente divulgação dos dados da Serasa Experian acendeu um alerta vermelho para o setor produtivo brasileiro. O país registra inadimplência recorde entre empresas, com destaque para um número alarmante: 7,6 milhões de pequenas e médias empresas (PMEs) acumulam 54 milhões de dívidas ativas, que somam mais de R$ 174 bilhões. O dado, por si só expressivo, ganha contornos ainda mais graves quando analisamos o perfil dessas empresas, justamente aquelas que sustentam o emprego, a renda e a movimentação da economia nacional.

Esse cenário não pode ser atribuído apenas a casos de má gestão ou a eventuais retrações cíclicas da economia. Ele é o reflexo direto de um ambiente de negócios hostil, marcado por um Estado pesado, tributação sufocante e políticas que pouco dialogam com a realidade do empreendedor. O empresário brasileiro convive diariamente com juros altíssimos, acesso restrito ao crédito e margens cada vez menores. Em vez de estímulo, o que se vê é uma máquina pública que expande gastos e multiplica burocracias.

Quando uma PME fecha as portas ou se torna inadimplente, não estamos diante de um problema isolado. Estamos diante da erosão de um ecossistema inteiro. Pequenas e médias empresas representam a espinha dorsal da economia, gerando a maior parte dos empregos formais no país. A inadimplência generalizada nesse segmento revela que não apenas negócios individuais estão em risco, mas também a capacidade do Brasil de sustentar crescimento e inclusão social.

O problema é agravado pelo ciclo perverso imposto pelo próprio Estado, em que se cria uma carga tributária excessiva, que asfixia a operação e, em seguida, oferece-se parcelamentos e programas de renegociação como solução paliativa. Isso não resolve a raiz do problema, apenas prolonga o sofrimento de quem já opera no limite. É como aplicar curativos em uma ferida que precisa de cirurgia.

É urgente repensar o sistema tributário, reduzir a burocracia, melhorar o acesso a crédito produtivo e, principalmente, oferecer segurança jurídica para quem decide empreender. Sem essas condições mínimas, qualquer tentativa de reverter a inadimplência será um esforço vazio. O Brasil não pode continuar punindo quem gera emprego e renda com regras confusas, instabilidade e custos elevados.

Além disso, é preciso reconhecer que o custo do capital no Brasil é incompatível com a realidade das PMEs, pois taxas de juros estratosféricas tornam quase inviável recorrer a empréstimos bancários para manter o negócio saudável. O resultado é previsível, em que mais empresas ficam endividadas, geram menos competitividade e ocorre um ciclo contínuo de fragilidade econômica.

Se não houver um redesenho sério do ambiente de negócios, o país corre o risco de perder uma de suas maiores forças: o empreendedorismo de pequenas e médias empresas. O Brasil precisa abandonar a lógica de sufocar primeiro e renegociar depois, substituindo-a por uma estratégia de fomento, previsibilidade e confiança.

O futuro só será mais animador se tivermos coragem de atacar as causas estruturais da inadimplência, caso contrário, continuaremos contabilizando estatísticas trágicas enquanto vemos o sonho de milhões de empreendedores se transformar em dívidas impagáveis. E sem PMEs fortes, o desenvolvimento do Brasil permanecerá uma promessa distante.

(*) é sócio cofundador da SAFIE Consultoria, especialista em Direito Empresarial e da Tecnologia pela PUC/MG. 

domingo, 5 de outubro de 2025

Professor Emérito afirma que é preciso respeitar a Constituição

 A Constituição e a liberdade

Considero que a liberdade de expressão é, sem dúvida, a pedra angular da democracia. Para mim, ela é fundamental não só para que haja um debate público vibrante, mas também para garantir a pluralidade de ideias em nossa sociedade.

Apesar de todas as críticas que são feitas ao ativismo judicial e das diversas questões constitucionais em debate, eu defendo que o Brasil permanece uma democracia. E, nesse contexto, vejo a liberdade — em especial a liberdade de expressão e de defesa — como a principal arma para a manutenção do Estado de Direito. É por meio dela que podemos proteger o indivíduo da opressão e do silenciamento.

Homenagem e a Defesa da Liberdade
Recentemente, a Reunião do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP foi dedicada à homenagem que intelectuais brasileiros — incluindo juristas, economistas, jornalistas e profissionais de diversas áreas — fizeram aos meus 90 anos, com o lançamento do livro "A Constituição e a Liberdade".

A obra foi coordenada pelo jurista Professor Doutor Modesto Carvalhosa e pelo economista Professor Doutor Luciano de Castro. O livro reúne 54 artigos de expressivos intelectuais brasileiros, com contribuições de autores como o ex-presidente Michel Temer; o ex-candidato à presidência da República Luiz Felipe D’Avila; o deputado federal Luiz Philippe de Orléans e Bragança, um dos mais ativos da nossa Câmara Federal; Manoel Gonçalves Ferreira Filho, o maior constitucionalista do Brasil; os economistas Marcos Cintra e Paulo Rabello de Castro e os jornalistas J. R. Guzzo (in memoriam), Paula Leal e Ana Paula Henkel.

O lançamento contou com a presença e palestras de diversos autores, como Modesto Carvalhosa, Paulo Rabello de Castro, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Tiago Pavinatto, Luciano de Castro, Angela Vidal Gandra da Silva Martins, Luiz Philippe de Orléans e Bragança, Almir Pazzianoto e André Marsiglia, que, entre outros presentes, fizeram manifestações notáveis.

Em suas palestras, todos demonstraram que a liberdade de expressão é o alicerce fundamental da democracia. Comprovaram que não há democracia em um país onde existe o receio de falar. O cenário onde a palavra pode levar à prisão e a crítica às autoridades gera risco de detenção é característico de todas as ditaduras, o que impede a existência de uma democracia genuína.

Os oradores, cada um no seu estilo e campo de conhecimento específico, defenderam com firmeza a ideia de que só a ampla liberdade de expressão é prova de uma verdadeira democracia, na qual o cidadão não precisa ter medo de falar.

Reafirmaram que, se houver abuso, a punição deve ser posterior ao ato. Em consonância com o antigo artigo 19 do Marco Civil da Internet — e não com a versão modificada pelo Supremo Tribunal Federal — e com a própria Constituição, a responsabilização pelo abuso de manifestação deve ocorrer por meio de ações judiciais e indenização por danos morais posteriormente, mas jamais em controle antecipado. Afinal, sem liberdade de expressão, a própria democracia se fragiliza.

Lembraram, ainda, que os Poderes Executivo e Legislativo são representativos do povo, enquanto o Poder Judiciário, que representa a lei, não tem essa mesma representatividade popular. Por essa razão, o Judiciário deve obedecer às determinações do povo, manifestadas por meio de seus representantes.

A principal mensagem foi a de que não devemos criticar pessoas, mas sim ideias, sempre respeitando as opiniões divergentes. Eles defenderam a ideia de que, mesmo não concordando com as decisões de uma autoridade, a crítica deve ser direcionada à ação ou ao posicionamento, e não a ataques pessoais. Trata-se, pois, daquilo que eu sempre fiz na vida: respeitar opiniões diferentes, não atacar pessoas, mas defender ideias. Essa é a verdadeira democracia.

Nesta esteira, todos os oradores defenderam o direito à palavra e à livre expressão do pensamento, com a ressalva de que a divergência deve ser dirigida às ideias e não às autoridades, demonstrando a elas respeito.

A anistia, por exemplo, deve ser para a paz, e não um instrumento para o ódio ou para a manutenção de radicalizações.

O Poder Judiciário deve ser um agente de pacificação, e não o mantenedor de um clima de insegurança. Afinal, seus integrantes são grandes juristas, mas não são políticos.

Durante a reunião no Conselho, o Poder Judiciário foi respeitado, mas criticado por seu protagonismo excessivo e pela invasão da competência de outros Poderes. Foi defendida a ideia de que a luta de todos os brasileiros deve ser pelo respeito à Constituição, pela liberdade de expressão e pela verdadeira democracia, com pleno direito de defesa. Esse é o caminho para um país realmente democrático.

Essa postura é a mesma que eu vi durante os 20 meses de debates constituintes. Ao sairmos de um regime de exceção, os Constituintes de 1988 almejavam um regime de plena democracia, com absoluta harmonia e independência entre os três Poderes.

Senti-me profundamente honrado por, aos 90 anos, ver um grupo tão importante de pensadores e intelectuais manifestar publicamente as ideias que defendemos na reunião. Era isso que eu gostaria de trazer aos meus leitores sobre o lançamento da obra "A Constituição e a Liberdade", pela Quartier Latin.

Ives Gandra da Silva Martins é professor emérito das universidades Mackenzie, Unip, Unifieo, UniFMU, do Ciee/O Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal – 1ª Região, professor honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia), doutor honoris causa das Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs PR e RS, catedrático da Universidade do Minho (Portugal).

sábado, 4 de outubro de 2025

Você está treinando seu negócio para IA?

 


Você está treinando a IA para o seu negócio ou o seu negócio para a IA?

Filippo Di Cesare (*)

Você investe em IA, contrata softwares modernos e monta alguns protótipos. Três meses depois descobre que os resultados não estão à altura. Isso soa familiar? Não é que a tecnologia falhou. É que talvez você tenha treinado a IA para o seu negócio, mas ainda não treinou o seu negócio para a IA.

  • Treinar a IA para o negócio é partir de casos de uso claros: reduzir custos, acelerar processos, melhorar atendimento. Funciona, mas é limitado ao “aqui e agora”.
  • Treinar o negócio para a IA é outro jogo: envolve preparar cultura, dados, processos e até o modelo de valor da empresa para que a IA não apenas responda às dores atuais, mas permita reinventar produtos, serviços e até a forma de competir no mercado. É aceitar que o problema do cliente pode mudar e que o verdadeiro diferencial será a capacidade de se adaptar.

 
No Brasil, os investimentos em inteligência artificial (IA) devem ultrapassar US$ 1 bilhão até 2026, segundo a consultoria International Data Corporation (IDC). Um estudo recente da Gartner revela que 64% dos executivos de tecnologia em todo mundo planejam implementar IA agêntica nos próximos dois anos. Já no Brasil, até o momento, poucos projetos nesse sentido foram efetivamente iniciados. Ainda assim, o mesmo estudo indica que mais de 68% das empresas brasileiras pretendem desenvolver iniciativas com IA agêntica no mesmo período, superando a projeção de outros países. 

Mas a pergunta central não é quanto se investe, é como se investe. Estamos apenas alimentando algoritmos e automatizando tarefas, ou estamos preparando organizações para absorver e multiplicar o impacto da IA?

É necessário olhar todos aspectos para preparar uma companhia para essa novidade e esse treino envolve várias dimensões:

  • Dados como ativo estratégico (governança e confiabilidade antes de tudo);
  • Integração aberta (APIs, interoperabilidade, evitar silos);
  • Mindset de aprendizado contínuo (errar rápido, ajustar rápido);
  • Ética e governança (IA como vetor de confiança, não de risco);
  • Talento e cultura (profissionais que pensem com a IA, não apenas sobre ela).

E por onde começar?

O primeiro passo não é comprar tecnologia. É mapear um problema estratégico e relevante, no qual o impacto da IA pode ser percebido claramente e, ao mesmo tempo, preparar dados e pessoas em torno desse problema. Pequeno o suficiente para aprender rápido, mas grande o suficiente para mostrar valor. 

Esse é o “ponto de entrada”: um caso de uso com valor real que, além do resultado imediato, ajude a criar a cultura, os dados e os aprendizados para escalar a IA dentro da organização.

A pergunta então permanece: você quer apenas treinar modelos para os problemas de hoje ou preparar sua empresa para os desafios que ainda nem existem? Porque, no fim, a IA não vai apenas responder ao negócio, ela vai redefini-lo.

(*) é CEO LATAM do grupo Engineering, companhia global de Tecnologia da Informação e Consultoria especializada em Transformação Digital. Formado em Ciências Econômicas e Estatísticas pela Universidade de Bolonha, na Itália.  

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Um artigo sobre a adoção das Sociedades Anônimas de Futebol-SAFs

 


SAF pode ser a salvação ou armadilha para o futebol brasileiro

Por João Antonio de Albuquerque e Souza (*)


A adoção da Sociedade Anônima do Futebol (SAF) tem alterado de forma significativa o cenário do esporte no Brasil. A Lei 14.193/2021 estabeleceu regras específicas para a transformação dos clubes em sociedades empresariais, exigindo a criação de um regime centralizado de execuções e a destinação de receitas para o pagamento de dívidas herdadas. O modelo surgiu como resposta a uma crise estrutural de endividamento, que atinge a maioria dos clubes brasileiros e que, em muitos casos, já comprometia sua sustentabilidade no longo prazo.

Segundo a legislação, 20% das receitas correntes mensais da SAF e 50% dos dividendos e remunerações recebidas como acionista devem obrigatoriamente ser direcionados à quitação dos débitos anteriores. Além disso, o prazo para pagamento das dívidas não pode ultrapassar 10 anos, sendo a prorrogação de 6 para 10 anos permitida apenas caso haja comprovação de que ao menos 60% do passivo foi liquidado até o sexto ano. Essa estrutura busca conciliar a atração de investimentos com a responsabilidade de manter em dia as obrigações históricas.

A questão central que se coloca é se os credores originais realmente receberão os valores dentro dos prazos estipulados. A experiência recente mostra que, embora a SAF represente uma injeção imediata de capital e a promessa de gestão mais profissionalizada, os passivos permanecem elevados e de difícil liquidação. O Atlético-MG, por exemplo, mesmo já tendo se transformado em SAF, carrega dívidas de aproximadamente R$ 1,5 bilhão, enquanto o Fluminense, que caminha para formalizar a mudança, acumula obrigações de cerca de R$ 870 milhões.

Por isso, a SAF tem funcionado como uma espécie de “tábua de salvação”, capaz de devolver algum poder de investimento e competitividade esportiva aos clubes, mas sem eliminar a necessidade de enfrentar o problema estrutural das finanças. A expectativa dos credores continua sendo o efetivo recebimento dos valores, o que ainda dependerá da disciplina de gestão adotada pelas novas sociedades.

Caso os compromissos não sejam honrados, surge a dúvida sobre quais instrumentos legais serão suficientes para garantir a execução das obrigações. A legislação oferece um caminho formal, mas a prática demonstra que a disciplina financeira nem sempre é uma característica consolidada no futebol brasileiro. Persistir em modelos de administração que gastam mais do que arrecadam, mesmo sob o regime da SAF, pode apenas postergar uma crise ainda mais grave.

Por outro lado, o modelo também abre espaço para avanços importantes. A estrutura empresarial tende a atrair investidores, ampliar a transparência e reduzir a interferência política na gestão dos clubes, pontos historicamente criticados no futebol nacional. O aporte de capital, como ocorreu recentemente com a proposta feita pelos investidores liderados pela gestora LZ Sport ao Fluminense, cria condições para reforços imediatos em elenco e infraestrutura, o que gera resultados esportivos mais consistentes. Esse círculo virtuoso, porém, só se sustenta caso a saúde financeira seja tratada como prioridade.

Há, portanto, um equilíbrio delicado entre a profissionalização da gestão e a responsabilidade com o legado de dívidas. A SAF pode representar um novo patamar de organização para o futebol brasileiro, mas também corre o risco de se tornar apenas uma forma sofisticada de empurrar problemas para o futuro. O sucesso do modelo dependerá, em grande medida, da seriedade com que clubes e investidores assumirem o compromisso de respeitar as regras e priorizar o equilíbrio financeiro.

O tempo será determinante para avaliar a efetividade da SAF no cumprimento das obrigações herdadas. Enquanto isso, credores, torcedores e agentes do mercado acompanham com atenção o desenrolar desse processo, conscientes de que o futuro do futebol brasileiro passa, inevitavelmente, pela capacidade de conciliar resultados dentro de campo com sustentabilidade fora dele.

(*) é atleta olímpico, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestre em Direito e Justiça Social pela UFRGS. Atualmente, é Presidente do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (TJD-AD) e sócio fundador do escritório Albuquerque e Souza.

 

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Conflitos e aprendizados no mundo corporativo

  

 

Dos Baby Boomers à Geração Z: conflitos e aprendizados do novo mundo corporativo

Por Roberto Santos (*)  

Pela primeira vez na história recente, cinco gerações convivem no mesmo ambiente de trabalho: os Baby Boomers (1946–1964), a Geração X (1965–1980), os Millennials (1981–1996), Geração Z (1997–2012) e a Geração Alpha, os nascidos a partir de 2010, e que estão estreando agora ano mercado de trabalho. Essa configuração inédita transformou o cotidiano corporativo em um mosaico de valores, expectativas e estilos de trabalho, e dependendo como a gestão é conduzida, o ambiente corporativo pode se tornar uma bomba-relógio, ou uma fonte de inovação e criatividade

Com o envelhecimento rápido da população brasileira, o choque de mentalidades é inevitável, e as tensões refletem diferenças históricas. Os Baby Boomers, formados no pós-guerra, prezam por estabilidade e respeito à hierarquia. A Geração X, que hoje ocupa cargos de liderança, ainda associa comprometimento à presença constante e ao esforço prolongado. Já a Geração Z, que caminha para os primeiros cargos de liderança, vai além: não coloca o emprego no centro da vida e recusa abrir mão do bem-estar em nome da carreira.

Esses contrastes também aparecem em outras questões: se para Boomers e Gen X sucesso significa promoções, títulos e aumentos salariais, para muitos jovens sucesso é manter saúde física e mental em dia, relacionamentos estáveis e um trabalho alinhado a propósito de vida. Para veteranos, essa postura pode soar como desinteresse; para os jovens, é apenas uma nova definição de sucesso.

Os estudos da ciência da personalidade, desenvolvidos pela Hogan Assessments, indicam que a maior parte das diferenças de personalidade não é causada pela idade, a época em que se vive(u) ou o grupo geracional, mas por diferenças individuais, ainda que o impacto predominante seja sentido como sendo do grupo de jovens atualmente o mercado de trabalho. 

Apesar dos atritos, a convivência entre gerações também tem mostrado caminhos de cooperação. Empresas começam a enxergar a diversidade etária como parte essencial de suas estratégias de inclusão, ao lado de gênero e etnia. Equipes multigeracionais, quando bem conduzidas, revelam ganhos concretos em inovação e produtividade.

A experiência dos mais velhos funciona como contraponto à ousadia e fluidez digital dos mais jovens. Iniciativas como programas de mentoria reversa já demonstraram bons resultados: juniores orientam executivos sêniores em temas tecnológicos, enquanto veteranos compartilham experiência em gestão e visão estratégica. Essa troca quebra estereótipos, fortalece vínculos e mostra que cada geração tem algo a ensinar.

O fato é que os choques geracionais vieram para ficar – e em breve a Geração Alpha entrará nesse jogo. Mas, se há algo que já aprendemos, é que o atrito pode ser transformado em diálogo e aprendizado. As empresas que prosperarem serão aquelas capazes de acolher as diferenças, transformar a diversidade em vantagem competitiva e construir uma cultura que una experiência e reinvenção. O futuro do trabalho está sendo escrito justamente nesse encontro de gerações e mais ainda pelo tratamento das pessoas como indivíduos e sem preconceitos que apenas servem para reduzi-las a um representante de qualquer geração.

(*) É sócio-diretor da Ateliê RH, consultoria especializada em desenvolvimento humano e organizacional.

Ilustração: Portal de notícias Hoje Mais. 

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Bancos sobre pressão expõe risco sistêmico


Lei Magnitsky coloca bancos brasileiros sob pressão e expõe risco sistêmico no país

Sanção contra Alexandre de Moraes cria impasse entre obediência ao STF e risco de isolamento do sistema financeiro internacional

Uma crise sem precedentes começou a se desenhar no coração do sistema financeiro brasileiro após a aplicação da Lei Magnitsky, instrumento jurídico dos Estados Unidos que congela bens e restringe a atuação de pessoas acusadas de violação de direitos humanos ou corrupção. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes foi incluído na lista de sancionados, medida que já provocou repercussões diretas nos bancos e nas empresas nacionais.

O efeito imediato foi sentido no mercado, o Ibovespa registrou queda de 2,1% em um único pregão, com R$ 41 bilhões evaporando do valor de mercado das instituições financeiras. De acordo com relatos da imprensa, o Banco do Brasil teria bloqueado um cartão vinculado a Moraes em território americano, sinalizando que o setor bancário começa a se alinhar às exigências externas.

A lógica da Lei Magnitsky é implacável. Qualquer instituição que mantenha negócios com indivíduos sancionados pode sofrer punições, como o banimento do sistema SWIFT e a exclusão de redes globais de liquidação em dólar. Isso cria um dilema para os bancos brasileiros, seguir a determinação dos EUA para não se tornarem párias no mercado internacional ou acatar decisões do STF, arriscando retaliações internas.

Para especialistas, o impacto não se limita ao campo político. O cenário ameaça empresas, investidores e cidadãos comuns que dependem da estabilidade do sistema financeiro. Segundo dados oficiais, o Brasil conta hoje com cerca de 23 milhões de empresas ativas, das quais mais de 7,3 milhões enfrentam problemas de liquidez,  um universo de R$ 170 bilhões em dívidas acumuladas. Em um ambiente já fragilizado, a perda de acesso ao crédito internacional ou a ruptura com mecanismos de liquidação em dólar pode acelerar o fechamento de companhias.

Em 2024, quase 2 milhões de empresas encerraram suas atividades no país, enquanto apenas 2.273 recorreram à recuperação judicial, número que representa menos de 0,01% do total. A baixa adesão ao instrumento reforça a percepção de que muitas organizações são pegas desprevenidas em crises desse tipo.

Para Marcos Pelozato, advogado e contador com 14 anos de experiência em reestruturação empresarial, a situação expõe a fragilidade das empresas brasileiras diante de riscos externos. “O empresário, muitas vezes, não tem clareza sobre os caminhos que pode seguir quando começa a enfrentar dificuldades. Sem planejamento, qualquer crise, seja política, econômica ou internacional, ganha força devastadora dentro dos negócios”, afirma.

Ele alerta que o impacto da Lei Magnitsky deve servir como sinal de alerta para companhias que ainda resistem ao planejamento de gestão de crise. “As empresas brasileiras precisam aprender a trabalhar com cenários adversos. Não podemos controlar disputas políticas ou geopolíticas, mas podemos preparar a estrutura do negócio para suportar choques externos. Falta consciência e preparo nesse sentido”, completa.

Enquanto o impasse entre STF e EUA segue sem solução, bancos e empresas brasileiras enfrentam uma escolha de alto risco. A mensagem enviada pelo mercado internacional é clara: neutralidade não é uma opção.

Sobre Marcos Pelozato

Marcos Pelozato é advogado, contador e empresário no setor de reestruturação empresarial e recuperação judicial. Reconhecido como referência no segmento, presta assessoria estratégica a empresas em crise financeira, com foco em reorganização societária, gestão de passivos e recuperação de negócios.