Na pandemia, esqueceram
Foucault
Por Jean Marcel Carvalho França (*)
Os
ditos progressistas têm, em geral, um especial apreço pela obra do filósofo
Michel Foucault; conservadores, por sua vez, torcem o nariz mal escutam o nome
do pensador francês ou de um dos seus muitos discípulos. Em tempos normais,
essa afirmação soaria demasiado óbvia, quase consensual. Todavia, coisas muito
estranhas ocorreram no planeta ao longo destes meses pandêmicos.
Inexplicavelmente, foucaultianos e simpatizantes, em meio à confusão sanitária
geral, deixaram totalmente de lado uma das mais salientes obsessões do pensador
francês, justo aquela relacionada diretamente ao drama que o mundo vivia: o tal
biopoder, isto é, o uso do medo da morte e da promessa de uma vida longa
(saudável) como um mecanismo eficaz de controle social.
Ora,
o que se viu durante o corre-corre e a guerra de informações gerados pela
pandemia foi uma verdadeira “inversão de valores”. Especialistas que passaram a
vida escrevendo e gritando contra todo tipo de encarceramento (de loucos em
hospícios, de presos em cadeias, de operários em vilas, de drogados em centros
de recuperação, etc.) vieram a público pedir freneticamente que o estado
atentasse contra as liberdades individuais e obrigasse cidadãos saudáveis,
lúcidos e honestos a mofarem em suas casas ou a de lá saírem somente em casos
excepcionais e devidamente mascarados – medida que, até se prove o contrário,
parece mais moral do que sanitária.
Críticos
incansáveis da ciência ocidental, aquela produzida pelo homem branco e
dominador, de uma hora para outra, tornaram-se positivistas ferozes e cobraram
testes de segurança – dentro dos bons padrões da ciência clássica – para
medicamentos utilizados há décadas e consumidos aos montes, e sem receitas
médicas, pela população. Pior ainda: inúmeros defensores dos denominados
“saberes alternativos sobre a doença e a cura” (aqueles produzidos por
parteiras, curandeiros, naturalistas etc.) puseram em xeque, lançando mão de
uma ideia quase mística de ciência, exagerada até mesmo para os positivistas
mais convictos, a experiência clínica – empírica – de médicos e enfermeiros.
O
mais bizarro, porém, ainda estava por vir. Um vírus qualquer da incoerência
tomou conta daquela gente que tinha a Big Pharma em péssima conta, daquela
gente que, atenta aos ensinamentos de Foucault, desconfiava do uso que tais
empresas faziam do vasto conhecimento que detinham sobre os corpos humanos; mas
também daqueles céticos que, por razões as mais variadas, até há algum tempo
atrás, desconfiavam e falavam horrores de imunizantes testados e aprovados há
décadas. Mal se aventou a possibilidade de uma vacina para o vírus de Wuhan e
esses precavidos e críticos de outrora, em meio a cânticos de louvor às
indústrias farmacêuticas, exigiram vacinas para todos, inclusive para os que
não queriam, não precisavam ou não podiam tomar a poção mágica ofertada pelos
laboratórios. Não contentes, num derradeiro gesto de adeus a Foucault, saudaram
com júbilos de alegria o passaporte sanitário, um instrumento nada desprezível
de “governo dos outros” – como diria o já esquecido filósofo.
Por
uma ironia do destino, coube, neste mundo de ponta-cabeça, aos denominados
conservadores comungarem de algumas das preocupações de Foucault e, por razões
que certamente não são as mesmas do pensador francês, lançar um olhar de
desconfiança sobre os poderes constituídos e sobre as políticas que estavam
implantando para combater a pandemia e supostamente garantir a vida dos
cidadãos. Foram pessoas taxadas de egoístas e individualistas – e também de
inescrupulosas e desprovidas de empatia – que, sem muito sucesso, advertiram
sobre os perigos de permitir que o estado adotasse medidas sanitárias de
eficácia duvidosa, mas que inquestionavelmente atentavam contra as liberdades
individuais, contra o sagrado direito de ir e vir dos cidadãos. Foi gente com
pouco apreço por Foucault e por suas críticas à ciência ocidental que apontaram
o uso mistificador que se estava fazendo dessa mesma ciência, que apontaram a
deslegitimação sistemática então em marcha da experiência clínica e mesmo a
censura que se impunha aqui e ali a certos temas trazidos a público por médicos
e cientistas que não engrossavam o coro geral. Foram surpreendentemente
críticos que jamais pensaram que doenças imaginárias eram criadas pela
indústria farmacêutica para vender medicamentos – ou que vacinas testadas eram
substâncias duvidosas inoculadas autoritariamente em nossas crianças – que
levantaram uma bandeira amarela para a segurança e eficácia de vacinas
desenvolvidas em meses, vacinas experimentais que pareciam estar sendo impostas
de uma maneira muito afoita a toda a população do país. Para completar a total
inversão de valores e tornar o ambiente ainda mais esquisito, foram indivíduos
apontados como simpáticos à opressiva ordem burguesa liberal que saíram por aí
conclamando as pessoas a não aceitarem passivamente uma medida que tem todo o
jeito de ser um instrumento poderoso de controle social: a exigência do
controverso comprovante de vacina – aquele mesmo que muitos progressistas se
orgulham de ostentar nas redes sociais.
Enfim, é realmente uma
sociedade complicada esta que construímos no Ocidente: parece que todas aquelas
partilhas que utilizávamos ainda ontem e que tornavam o mundo tão bem delineado
e compreensível já não servem mais para nada.
* Jean Marcel Carvalho
França é professor Titular de História do Brasil da Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho e autor, entre outros, dos seguintes livros:
“Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista (Imprensa nacional -
Casa da Moeda, 1999), “Visões do Rio de Janeiro Colonial” (José Olympio, 2000),
“Mulheres Viajantes no Brasil” (José Olympio, 2008), “Andanças pelo Brasil
colonial” (Editora da UNESP, 2009), “A Construção do Brasil na Literatura de
Viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII” (José Olympio/Editora da UNESP, 2012),
“Piratas no Brasil“ (Editora Globo, 2016) e “Ilustres Ordinários do Brasil”
(Editora da UNESP, 2018).
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