Direito e
pobreza
Amadeu Garrido (*)
O New York Times, em colaboração com
a Folha de São Paulo de quatro de junho, discorre sob o título "Realidade
desafia leis comuns". "Comuns" porque as leis são destinadas a
todos, sem exceção. Os latinos empregaram a expressão "erga omnes": a
humanidade inteira está sujeita às leis, indistintamente. Aí mora a iniquidade.
Fingimos que somos todos iguais. Quando de um furto famélico, uma débil luz se
acende em alguns cérebros, momentaneamente, acerca da injustiça. Não é preciso
dizer injustiça "social", já que toda justiça e toda injustiça são
sociais.
Um Tribunal da Itália, solenemente,
certamente depois de um longo, penoso e custoso processo, proclamou o que
cogitações de penalistas já abordaram "ad nauseam": a Justiça deve
ficar ao lado do "direito à sobrevivência", ao invés do "direito
à propriedade". O acusado fora apanhado furtando um pedaço de queijo e
linguiça.
Entre nós, são os "crimes
famélicos". Inúmeros julgados do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo
Tribunal dedicaram tardes inteiras a debates sobre como caracterizá-los. Só o
queijo; a linguiça não foi demais, a ponto de descaracterizá-lo? Em
geral, esses debates judiciais são demorados. Todos os magistrados querem
aplacar sua consciência ou, pelo contrário, demonstrar que a lei flexível
equivale ao fim da sociedade. Tema importantíssimo. Em seguida, "la nave
vá". Teremos outros episódios, um pão e mortadela, entre outras
essencialidades vitais.
O grande Victor Hugo, em uma obra
magnífica que permaneceu desconhecida até pouco tempo (L'homme qui rit"),
admirou a forma de aplicação das leis inglesas adaptada aos costumes. O
rigor da lei poderia ser afastado pelo xerife, que fazia um juízo de valor
imediato sobre o fato e o infrator ou infratores. Muitas vezes, famílias
inteiras, desesperadas, atacavam a propriedade alheia. O xerife compreendia e
os absolvia na hora. Segundo o sistema, estava a seu alcance fazê-lo. Não
prevaricava. Não era robótico. Sua opinião, no calor dos fatos, valia tanto
como a de um majestoso Tribunal. Nem por isso foram abalados os pilares da
sagrada propriedade inglesa e seu glorioso destino.
Em outro momento, o grande romancista
fala dessa majestade do Poder Judiciário. O réu, em condições parecidas, num
ambiente de arquitetura esmagadora do ego, com suas cortinas paradisíacas a
combinar com a tapeçaria vermelha, recebe do homem devidamente paramentado uma
sentença de absolvição. Solto de imediato, deixa célere o ambiente das pompas
e, na rua, em desabalada carreira a casa do direito. O medo não arrefecera nem
mesmo depois de absolvido.
Claro que o ideal seria a
inexistência de sociedades injustas, sem desigualdades e fome. Não há, porém,
como desenvolver o tema, o maior de todos, desde Aristóteles, num espaço de
jornal. Porém, há como pensar com Victor Hugo. As "autoridades", às
quais se daria um sentido amplo, desde que em sentido não punitivo, poderiam
deixar de aplicar a lei repressiva, em casos de percepção imediata da
inexigibilidade de outra conduta, salvo a de aquiescer conformadamente à morte.
Um funcionário de supermercado, um escrivão de polícia, um policial, um
delegado, poderiam limitar-se a fazer uma advertência verbal ao ladrão de uma
salsicha, dar um cartão amarelo ao miserável e liberá-lo para continuar seu
drama...
As estrelas continuariam a brilhar no
espaço, a meta fiscal não seria descumprida, ao contrário, as despesas de um
processo próprio da "loucura" de Erasmo, seriam poupadas; talvez o
único ônus fosse o de promotores, juízes, desembargadores e ministros não
poderem amainar suas consciências por meio de atos generosos. E a pomposidade
dos edifícios judiciários perderem alguma importância no campo da imperceptível
opressão da arquitetura.
(*) É advogado e poeta. Autor
do livro Universo Invisível, membro da Academia Latino-Americana de Ciências
Humanas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário