segunda-feira, 13 de junho de 2016

Gurovitz recorda a grandeza de três reis


O campeão dos escritores grita: “Ali, buma iê"

Em "A luta", Norman Mailer enfrenta o campeão dos pesos-pesados, o rei do mundo, Muhammad Ali

HELIO GUROVITZ

O vídeo está lá no YouTube para quem quiser ver a luta. O documentário Quando éramos reis venceu o Oscar e deixou na memória o refrão Ali, buma iê (Ali, mata ele). Mas o livro, bem, nada se compara ao livro. O campeão dos escritores, Norman Mailer, enfrenta o campeão dos pesos-pesados, o rei do mundo, Muhammad Ali, o maior de todos, ponto. Desacreditado, Ali tinha 32 anos quando entrou no ringue contra George Foreman, para recuperar o título mundial. Sete anos mais novo, socos de uma potência jamais vista, Foreman era campeão invicto. De 40 lutas, vencera 37 por nocaute. Havia mais de dois anos, nenhum rival passava do segundo assalto. Mas Ali, bem, Ali era Ali. Mais, bem mais que um boxeador. Ativista da causa negra, convertido ao islã, misto de símbolo e herói, destemido, belo, forte, corajoso – o negro que não se submete ao poder branco. Agressivo, falava o que lhe dava na telha – e como falava. No ringue, “flutuava como borboleta; ferroava como abelha”. Sua agilidade nas pernas era lendária – “Vou dançar, e vou dançar, e vou dançar e dançar…”. Foi campeão até 1967, quando o título lhe foi usurpado. Suspenso do boxe pela recusa em servir no Vietnã – “Nenhum vietcongue jamais me chamou de ‘nigger’ (termo racista para negro)”. Nunca se conformou. Era o maior, ponto. Enfrentar Foreman era sua chance de prová-lo. De novo. “Ali, buma iê.” O embate tornou-se a luta do século.
O ex-presidiário e agitador cultural Don King promoveu o confronto, patrocinado pelo ditador e cleptocrata africano Mobutu Sese Seko, tido na época como sétimo homem mais rico do mundo. A luta foi marcada para 30 de outubro de 1974 na terra de Mobutu, o Zaire, aquele país de bandeira semelhante à do Brasil derrotado pouco antes pela Seleção de Zagallo na Copa do Mundo. Numa nação com renda per capita de US$ 70 e 35% de alfabetizados, um assento perto do ringue era vendido por US$ 250. Cada pugilista receberia US$ 5 milhões – e Foreman queria mais. O gongo estava marcado para as 4 da manhã, hora local, para fugir do calor e pegar o horário nobre na TV americana. A plateia de 60 mil incluía a nata do boxe e do jornalismo esportivo: o ex-campeão Joe Frazier, repórteres como George Plimpton, Hunter Thompson e, estrela maior, Norman Mailer. Ele recebera, diziam, US$ 1 milhão pelo último livro – “campeão dos escritores” foi como King o definiu. Graças à fama, Mailer pôde acompanhar de perto a preparação dos dois rivais. Ensaiou até treinar corrida com Ali, por quem torcia.
No ano seguinte publicou A luta, um desses livros que não conseguimos largar. Mailer escreve sobre si mesmo na terceira pessoa. Vira Norman. Em Nova York, Norman investiga a filosofia banto para compreender as ideias ancestrais que moviam Ali e o mundo do boxe, quase só de negros. Aprende os conceitos de muntu (vida no ser), kuntu (força das coisas), n’golo (força vital) e Nommo (palavra). Descobre a força de seus próprios preconceitos. Na África, entende que o boxe para Ali é apenas um meio de atingir seus fins político-religiosos. É Don King, bigodes e cabelos espetados, em seu linguajar viscoso, quem decifra Ali para Norman: “A luta atrairá 1 trilhão de fãs, pois Ali é russo, Ali é oriental, Ali é árabe, Ali é judeu, Ali é tudo o que a mente humana é capaz de conceber. Ele atrai todos os segmentos do nosso mundo. (…) Seja o que for que Ali estimula, Ali motiva até mesmo os mortos”. O fascínio de Ali é universal a ponto de despertar a paixão de todos, até um judeu como Norman, por um muçulmano negro, convencido e falastrão.
Norman entende, enfim, a essência do boxe. É um esporte não só de força, mas de tensão e estratégia. Psicológico como o xadrez. Ali passara dias provocando Foreman. “Vou dançar, e vou dançar, e vou dançar e dançar.” Começa a luta e ele faz o contrário. Abandona o centro do tabuleiro e se acomoda nas cordas, afrouxadas antes do primeiro assalto. Deixa Foreman bater, e bater, e bater. Vez que outra faz um gambito e ataca, desfere golpes bem colocados. Provoca com olhares e uma série interminável de impropérios. Ali não para de falar. A energia de Foreman vai esgotando. Até que, quase no final do oitavo assalto, Ali acerta-lhe o queixo e sai das cordas. Move as peças para o centro do tabuleiro. Dispara socos velozes, duros, três direitas e uma esquerda. Aí é Foreman quem vai às cordas. “E então um grande projétil, do tamanho exato de um punho dentro de uma luva, penetrou no meio da mente de Foreman, o melhor soco daquela noite espantada, o soco que Ali guardara por uma carreira”, escreve Norman. “A vertigem tomou conta de Foreman e o revolveu. Ainda dobrado pela cintura (…), começou a desmoronar e a ruir e a cair, mesmo não querendo ir ao chão.” Ao longo de “dois desmoronantes segundos”, Foreman vai das cordas à lona. A plateia delira: “Ali, buma iê”. Xeque-mate.


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